Filhas da ancestralidade: mulheres indígenas se reúnem por territórios e pela vida

Mais de cinco mil mulheres indígenas ocuparam Brasília para incidir por direitos. A mobilização culminou na construção de propostas para o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres Indígenas.
Entre os dias 3 e 7 de agosto, a IV Marcha das Mulheres Indígenas trouxe milhares de mulheres dos seis biomas brasileiros para ocupar a capital federal com cantos, danças e rezas ancestrais que demarcam sua luta histórica. Com o tema “Nosso Corpo, Nosso Território: somos as guardiãs do planeta pela cura da terra”, a Marcha foi precedida pela 1ª Conferência Nacional das Mulheres Indígenas — um momento inédito de articulação política, debate e construção de propostas em defesa da vida e dos territórios, incluindo os corpos-territórios.
“A Marcha é uma expressão potente que visibiliza, nacional e internacionalmente, a luta cotidiana das mulheres indígenas em seus territórios. Ela convoca a ancestralidade para transformar realidades, enfrentando as múltiplas violências que as atingem com políticas voltadas à proteção dos seus corpos, individuais e coletivos”, afirmou a Analista de Campo da ACT-Brasil com foco em medicinas indígenas e mulheres, Lirian Ribeiro.
Do território à mobilização

A ACT-Brasil apoiou a participação de mulheres dos povos Kokama, Tikuna, Caixana e Kambeba, do Alto Solimões, região no sudoeste da Amazônia brasileira, estado do Amazonas. Para muitas delas, foi a primeira vez fora dos seus territórios. Estar em um espaço de mobilização e incidência foi vivido como uma verdadeira escola de liderança e fortalecimento da luta.
“Estar aqui é uma honra. Vim do interior do Amazonas e vivi momentos muito importante. Foi emocionante participar da Marcha pela primeira vez, ver nossas vozes sendo ouvidas e nossas propostas aprovadas. Que essa luta continue, por nós e pelas próximas gerações”, declarou Evanilde Tananta, do povo Kambeba.
A presença da ACT-Brasil na mobilização e debates também fortaleceu vínculos com lideranças do Alto Solimões, região marcada por grandes desafios de acesso e visibilidade. Para Marilane Irmão, indígena do povo Kokama e Analista de Relações Institucionais e Captação de Recursos da organização, a participação foi um marco importante:
“Percebemos o impacto da ACT na consolidação da nossa presença e confiança institucional no Alto Solimões, uma região historicamente invisibilizada para apoios e articulações. Foi potente ver as mulheres se empoderando e entendendo a importância da articulação política”, relatou.
Essas mulheres integram organizações que fazem parte da rede da União das Mulheres Indígenas da Amazônia (UMIAB), articulação parceira da ACT-Brasil para o fortalecimento da atuação política das mulheres indígenas e a defesa de seus territórios. Por meio de ações conjuntas, como formações, incidências e apoio a lideranças, ACT-Brasil e UMIAB têm contribuído para ampliar a participação das mulheres nos espaços de decisão e na construção de estratégias frente às emergências climáticas e às violações de direitos.
Propostas para o Plano Nacional

As mulheres do Alto Solimões se somaram aos debates políticos da Conferência organizados em cinco eixos temáticos:
- Direito e gestão territorial
- Emergência climática
- Políticas públicas e enfrentamento da violência de gênero
- Saúde
- Educação e transmissão de saberes ancestrais para o bem viver
Cada eixo formulou diferentes propostas que irão subsidiar a construção do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres Indígenas. No dia 6, em plenária, as participantes fecharam o teor da carta votando em 49 ideias prioritárias.
O eixo “Direito e gestão territorial” trouxe o fortalecimento da participação das mulheres na gestão dos territórios, inclusive na elaboração dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) e dos protocolos de consulta. A defesa da demarcação de Terras Indígenas e a contestação de propostas legislativas como o Marco Temporal e o chamado “PL da Devastação” — consideradas ameaças diretas aos territórios das mulheres indígenas – também foram abordados.
Já na linha “Políticas públicas e enfrentamento da violência de gênero”, foi debatida a urgência de criar mecanismos específicos de proteção às indígenas, com respeito às línguas, culturas e territorialidades. Foram propostas a criação da Casa da Mulher Indígena, a implementação de protocolos de atendimento diferenciados e a inclusão dessas ações nos orçamentos públicos. O eixo também defendeu a participação ativa das mulheres na construção e fiscalização dessas políticas.
O tema “Saúde” abordou a necessidade de um sistema de atenção integral que respeite os saberes tradicionais e as práticas de cuidado das mulheres indígenas. Foram reivindicadas melhorias no acesso aos serviços de saúde, fortalecimento da saúde indígena com protagonismo feminino e valorização das parteiras e benzedeiras. O eixo também propôs a formação de profissionais indígenas e políticas específicas para a saúde mental, sexual e reprodutiva.
Já no âmbito da Educação e transmissão de saberes ancestrais para o bem viver, a valorização das línguas, culturas e conhecimentos indígenas nos processos educativos teve espaço. As mulheres defenderam a educação intercultural e bilíngue, com formação e valorização de professoras indígenas. Também propuseram o fortalecimento de espaços comunitários de aprendizagem, onde os saberes tradicionais sejam transmitidos entre gerações. A educação foi reafirmada como ferramenta de luta e continuidade dos modos de vida indígenas.
Por fim, o eixo de emergência climática destacou o impacto direto das mudanças climáticas nas comunidades indígenas. Um de suas orientações aborda a necessidade de aumentar o investimento na proteção dos modos de vida tradicionais e suas formas de cultivo, como plantio de sementes, manejo sustentável, restauração ecológica, considerados soluções eficazes para mitigar as crises climáticas.
Ensaio para a COP30

Embaladas pelo eixo da emergência climática, a Conferência e a Marcha também foram momentos-chave na preparação das pautas das mulheres indígenas para a COP30, que ocorrerá de 10 a 21 de novembro, em Belém (PA). Um dos principais destaques foi a urgência de incidir por políticas globais que reconheçam e protejam as mulheres indígenas e seus territórios.
As discussões reforçaram que enfrentar a crise climática de forma efetiva exige garantir a demarcação das Terras Indígenas e destinar recursos públicos para sua proteção permanente — incluindo o fortalecimento da fiscalização em áreas críticas, afetadas pelo desmatamento e atividades ilegais. Sem investimento contínuo e políticas estruturantes, não é possível proteger os ecossistemas nem os modos de vida dos povos que os protegem há séculos.
“A Marcha ampliou o protagonismo das mulheres indígenas nas discussões para a COP30. Elas saem daqui mais fortalecidas em suas articulações, em sintonia para incidir politicamente. Isso é essencial para que a comunidade internacional compreenda que, sem os povos indígenas — e, principalmente, sem as mulheres indígenas —, a justiça climática se torna uma ilusão”, conclui Lirian Ribeiro.
Um mar ancestral em Brasília

No último dia da Marcha, 7 de agosto, mais de cinco mil mulheres seguiram em caminhada até o Congresso Nacional, em um ato político-cultural. Foram cerca de dois quilômetros percorridos com cantos, danças e expressões sagradas da diversidade indígena. Brasília foi ocupada por um verdadeiro mar ancestral de mulheres que protagonizam suas histórias e fortalecem a luta por reconhecimento e proteção.
A marcha denunciou as violências cotidianas que acometem as mulheres indígenas, exigiu políticas públicas e reafirmou o protagonismo das mulheres na construção de uma sociedade justa. Tiveram destaque ainda os gritos contra o Marco Temporal e o Projeto de Lei 2.159/2021, conhecido com o PL da devastação. A reivindicação pela demarcação dos territórios também teve protagonismo, representando a luta mãe dos povos indígenas do Brasil.
O balanço dos maracás chegou ao Congresso Nacional. Com falas que enfatizaram a urgência em vetar os retrocessos no Congresso, as mulheres reafirmaram suas existências, suas línguas e suas prioridades. Após a Marcha, foi realizada uma sessão solene na Câmara dos Deputados com presença de centenas de lideranças indígenas. Confira aqui o vídeo da sessão.
A Marcha — agora acompanhada também pela Conferência — se consolida, mais uma vez, como expressão da existência e da importância das mulheres indígenas, além de se afirmar como um movimento fundamental de incidência sobre o poder público em defesa dos direitos dessas mulheres, que carregam em seus corpos as marcas dos ecossistemas, da ancestralidade e da vida.
Confira a carta final do evento aqui.

A marcha foi organizada pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA), com apoio da Articulação dos povos indígenas do Brasil (Apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), diversas outras articulações indígenas, organizações da sociedade civil e do Ministério dos Povos Indígenas (MPI).